Ainda dá tempo
 



Cronicas

Ainda dá tempo

Taís Moreira


"Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir!"
Paulo Freire

"Ainda dá tempo de desistir". Eu sei, essa frase que aquela professora lhe disse quando você fez o estágio continua gritando em sua cabeça enquanto você ajeita novamente a sua toga.

A faculdade foi uma boa fase em sua vida. Conquistar grandes amizades, o respeito dos professores e se manter como uma das melhores alunas do seu curso enquanto trabalhava, foi natural pra você. Talvez pela serenidade de saber que era ali o seu lugar.

Contudo, essa certeza não está presente agora, né? Eu sei também. A teoria e o desejo de fazer diferença na educação era tão mágica nas cadeiras acadêmicas, mas não foi resiliente a ponto de encarar a realidade. E agora te faz repensar se essa foi realmente a escolha correta. Será que ainda daria tempo de desistir? Eu não quero te influenciar a nada e nem sei como seria se desistisse. Mas, deixe-me contar um pouco de como será se você permanecer.

A cerimônia de formatura vai te causar um estado de satisfação, de que valeu a pena ter superado as dificuldades do estágio e seguido em frente. O discurso divertido de suas colegas, regado pela repetição do mantra "arrasem" vai te contagiar por um tempo. Afinal, sua formatura é em 2009, ano em que vivemos um grande avanço nas leis educacionais. Vocês, formandas, darão aula num país com mais inclusão escolar, com investimentos no ensino superior, com ações afirmativas, com novas discussões curriculares, com incentivo à leitura e manifestações culturais, com respeito à história das diferentes etnias e tantas outras conquistas.

Lamento dizer que não vou te consolar ou confirmar que a sua docência será esse arraso. Os primeiros anos serão complicados, o quarto então, vai beirar o insuportável. Você vai continuar trabalhando como monitora e logo será nomeada como professora do município que você mais queria, aquele que já foi reconhecido pelos maiores salários e melhor plano de carreira.

Você já não é tão inocente e ingressará nesse trabalho sabendo das dificuldades de uma escola pública da periferia da capital. Mas você tem grandes ideias e ótimas intenções. As infâncias sofridas com que você vai se deparar ao longo desses primeiros anos vão te desestabilizar. O seu ofício vai se tornar uma rotina de sobrevivências diárias com breves e raros momentos de satisfação. Em 2013, porém, estará exausta de apenas sobreviver. Seu corpo vai lhe avisar que algo não está bem. Você vai pensar que suas melhores qualidades (a criatividade e a empatia) não lhe servem nessa profissão. E você vai matá-las aos poucos. Nada daquilo que já estudou vai fazer sentido e você vai acreditar que se tornou a pior das professoras. Diante desse cenário de insuportáveis dificuldades, a ideia de desistir vai parecer cada vez mais concreta. Você vai adoecer e começará a temer o simples pisar numa escola. Aquele sorriso que desde sempre você abria ao olhar uma criança, vai se transformar numa rota de fuga. O seu trabalho que te definia tanto, vai fazer com que você se desencontre de si mesma. Mas calma, por algum motivo, nesse fundo do poço em que você se enfiou terá um espelho parecido com aquele da Alice. E será mergulhando nele, ou em você mesma, que verás sua vida e sua docência por um avesso mais esperançoso.

Sua compreensão sobre a educação vai se ampliar de tal forma que não retornará mais pra aquele estado pessimista. Você aprenderá mais que nos livros acadêmicos ao se reencontrar com a criança criativa e sonhadora que insistiu em permanecer. Você enfim vai entender que um bom professor é alguém que se conhece em suas qualidades, fraquezas, humanidade. Que pra ter autoridade é preciso acima de tudo respeitar o outro, seja ele da idade que for. Que professores podem te inspirar, mas copiá-los não vai dar certo. Que Paulo Freire faz cada vez mais sentido, pois ainda é fundamental educar com boniteza e aprender enquanto se ensina. Que antes de qualquer conteúdo ou necessidade pedagógica, está um outro ser humano necessitando de afeto para adquirir saberes. Que conhecimento é alimento e que devemos continuar lutando para que todos tenham o direito de se alimentar, mas também é importante despertar essa fome com encantamento. Sim, você vai voltar a acordar animada para mais um dia de trabalho e com o tempo se tornará a professora amada pelos estudantes, respeitada pela comunidade e admirada pelos professores que estão começando. E você não será aquela que vai alertá-los de que ainda há tempo de desistir.

Você deve estar se perguntando se o futuro da educação no país vai ser melhor depois disso. A resposta é não! O Brasil vai sofrer grandes crises econômicas e políticas nos próximos anos. E tudo aquilo que estava evoluindo vai desmoronar aos poucos, inclusive seu salário e plano de carreira. Vamos chegar ao ponto de sermos considerados inimigos da sociedade e da família. Parte da população vai preferir armas a livros. Muitos serão contra a escola pública. Alguns vão dizer que o imaginário não é de Deus, que o nosso "Paulinho" é doutrinador, que determinados livros e conteúdos precisam ser proibidos, que a educação deve ser militarizada ou que o ensino pode ser doméstico. Também passaremos por uma pandemia mundial em que escolas serão fechadas e teremos que dar aula a distância e depois reaprender a nos aproximar de infâncias e juventudes que estarão mais desconectadas do humano. Eu sei que você deve estar rindo da minha criatividade e pensando de qual livro do George Orwell eu me inspirei pra esta distopia. Mas é tudo verdade.

Eu sigo aqui, em 2022 diante desse espelho em que te vejo. Mas o sinal já tocou e não posso continuar essa conversa. Uma turma cheia de expectativas nos espera agora. E saiba que estamos prontas pra aprender e arrasar em mais um período de aula enquanto esperançamos dias melhores dentro e fora da escola. Vamos juntas? Ainda dá tempo!


Taís Moreira nasceu em Porto Alegre no final da década de 80. Graduou-se em Pedagogia pela UFRGS e atualmente trabalha como professora na Rede Municipal de Ensino. Participa de diversas coletâneas de contos, poesias e crônicas. Lançou seu primeiro livro, Pequenos Grandes Nós, em 2019. Quando criança escrevia para transbordar seu pequeno grande mundo de imaginação e afetos. Hoje escreve para aproximar pensamentos, pessoas e porquês. Participou do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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